Pra que se envolver?
Pra que se envolver?
Eu estava sentado em uma van, a poucos quilômetros de casa. Lotação
bem cheia, mas eu entrara no primeiro ponto e sentara logo após a catraca.
Ouvi uma senhora falar bem alto:
- Moço!
Não é difícil perceber quando alguém fala ao telefone.
Novamente:
- Moço!
Mais uns segundos e ouço:
- Moço, onde você pegou minha filha?
Minha cabeça analisou. Era um golpe. Eu estava com as pernas
doendo de ficar em pé, não queria levantar. Meus dois pensamentos foram “É um
golpe e ela vai perceber.” O outro foi: “Estou enganado, não sei o que acontece
e não tenho nada haver com isso.” Ouvi novamente:
- Moço, o que eu tenho que fazer? Não faz nada com minha
filha!
Não levantei aos trancos, mas minha estatura fez com que eu
empurrasse algumas pessoas até chegar a senhora. Estávamos a poucos quarteirões
da 21° DP.
- Dona, é um golpe. Sua filha está bem. Tem uma delegacia no
próximo ponto. A senhora vai descer e ir até lá comigo. Eu vou te acompanhar.
Pra quê?
A mulher tremia. Olhou para mim aflita e me estendeu o telefone.
Pra quê eu precisava encerrar meu dia ouvindo uma voz de um desconhecido em um
celular não esterilizado?
Não sei exatamente o que ocorreu, mas depois concluí que uma
moça puxou a senhora, pediu o telefone da casa dela e tentou ligar para a filha.
Abracei os ombros da mulher e desci com ela do ônibus. Pensei
comigo que ela estava prestes a desmaiar. Foi tudo muito rápido. Eu segurava a
senhora, procurava a entrada da delegacia e levemente percebia a moça que falara
com ela descer atrás de nós. Mas minha atenção estava desviada por outra causa.
Eu mantive o celular ao ouvido, sem falar, apenas ouvindo. Se eu me assustei
com o que ouvi, nem imagino o que aquela senhora passou.
“Se a senhora colocar mais alguém nessa negociação, a
senhora nunca mais vê sua filha.”
Deletei da minha memória outras coisas que ouvi. Eu apenas
falava “Pera, pera, pera.” Eu queria tempo.
A moça nos alcançou antes de entrarmos na delegacia. Conseguira
ligar de seu celular para a casa da senhora:
- É sua filha, ela ta em casa.
- Pergunta se ela tá bem!
- Fala com ela a senhora! – eu disse.
A mulher falou com a filha ao telefone e tremeu ainda mais,
mas era de alívio. Ouvi a voz no celular da senhora. O cara não desistira. Mas
agora era minha vez de falar:
- Bandido, perdeu. Ela tá em outra linha falando com a
filha. Em que presídio você tá? Vai curtir seu banho de sol. Vai ver o sol
nascer quadrado. Vai trabalhar, vagabundo!
- Você é polícia? – o tom de arrogância e prepotência da voz
dele não se alterou nem 0,01%.
- Não. Sou PF e vou te encontrar, filho da puta!
Claro, não sou policial federal e a única coisa que eu
queria encontrar era um banheiro pra ver a situação da minha cueca. Mas eu
precisava blefar.
A ligação caiu.
A senhora se acalmou e deu tudo certo. Sentou-se no ponto de
ônibus novamente para esperar outra condução. A turba já estava toda ao redor
dela, falando como se tivessem presenciado toda a cena. Nunca ninguém põe a
cara na janela quando ouve um tiro. Mas um minuto depois tá todo mundo na rua
dizendo que presenciou tudo.
Fui para casa a pé, o resto do caminho. Quando aquela
senhora me disse “Deus te guarde, você é um anjo.” me surpreendi respondendo “Amém”.
Eu que sou ateu, resolvi andar um tempo pra pensar naquilo tudo.
Pra quê se preocupar com alguém, principalmente alguém que
você não conhece? Não vou mentir, senti um grande orgulho do que pude fazer por
aquela senhora. Mas no fundo eu sei que...
Não fiz por ela. Fiz por mim.
Não a ajudei, não a salvei e nem a filha dela. Não virei um
herói por isso – apesar de o ego ter feito uma capa vermelha esvoaçar sobre
meus ombros...
Eu preservei um sentimento – e um sentido de direção - que tenho
dentro de mim.
Ps. não é um conto. Aconteceu hoje, primeiro de outubro de
2015.
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