Miguel

Miguel
Miguel não se sentia alguém crente, fiel ou religioso. Não dava muita atenção a tudo isso. Igrejas, templos, bíblias, Maomé ou Jesus. Nada disso lhe importava. Não precisava. Um homem que vê anjos, conversa com eles e ganha seus favores não precisa de fé. Estava tudo ao seu redor o tempo todo.
Se enquanto tomasse cerveja sentado em uma cadeira na praia e uma garota de biquíni passasse e lhe atraí-se, era só pedir a um anjo e essa inocente era cortejada pelo próprio anjo e atraída até ele, sem que ele nem precisasse tirar o boné para cumprimentá-la.
Quando pensava em trocar de carro, não precisava ir até uma agência. Seu advogado lhe ligava e explicava quais documentos assinar após o falecimento de um parente mais velho. Transferia o veículo e voltava a curtir um carro novo.
No dia em que uma ficante lhe contou que estavam esperando um filho, ele se trancou em desespero no banheiro do apartamento. Queria pedir ajuda a um anjo. Com o passar dos anos, percebera que um anjo em especial o ajudava mais do que os outros. Ele se chamava Azazel.
Disse seu nome, ouviu um vidro quebrar e um grito. Correu até a sala e viu a janela quebrada. Por ela, viu o corpo da ficante entortados sobre a calçada. Vomitou, se controlou e se pegou pensando: “Dois problemas a menos.” Agradeceu a Azazel e dormiu.
Havia outro anjo com quem tinha contato frequente. Este nunca lhe prestava favores, por isso lhe dava menos atenção. Ele só servia para dar conselhos. Seu nome era Gabriel.
Anjo chato. Sempre falando, sem nada fazer. Miguel percebia que Gabriel esperava que ele fizesse algo por si. Mas ele não precisava. Tinha toda bancada celestial a seu favor. Para que precisar de um anjo que só fazia falar em seus ouvidos?
Miguel se tornou um homem de negócios. Negócios exclusos. Traficava cocaína de Assunção até Cascavel. E de lá a distribuía para São Paulo e Rio de Janeiro. Volta e meia Gabriel lhe aparecia e o fazia pensar no mal que vinha causando a si e aos outros. Mas era Azazel que o livrava dos bloqueios policiais na estrada. Azazel o protegia de qualquer coisa.
Um belo dia trazia cocaína escondida em seu Fox pela estrada e viu um Gol tombar em uma ribanceira. Freou o carro violentamente e andou até a beirada da estrada. Viu o teto deformado do veículo batendo contra uma árvore. Pediu a Azazel que o levasse até o carro. Como em um passe de mágica, ele desceu o terreno íngreme e seco, levantando poeira e chegando em pé ao lado do carro. Havia cheiro de gasolina. Abriu uma das portas e tirou uma mulher desacordada de lá. Arrastou-a para longe. Correu de novo até o carro. Tirou o motorista de lá com mais dificuldade. Era um homem grande e pesado. O colocou ao lado da mulher e encostou o ouvido ao seu peito.
Não batia mais. Mas ele viu por acaso que havia pó branco no bigode do homem.
Ah, sei o que é isso.
Correu até a mulher e tentou ouvir seu coração. Nada. Sentou-se e tentou se confortar. Mas ouviu um som. Uma pequena batida. Havia só silencio ao seu redor. O som vinha do corpo da garota. Talvez tivesse ouvido seu coração?
Curvou-se sobre ela. Não, não haviam batimentos. Ele olhou para o rosto dela. Fechou seus olhos com delicadeza. Sua mão estava sobre a barriga dela e então ele sentiu outra batida.
Não era o coração dela.
“É assim que bebês chutam??”
Sentiu o chute mais duas vezes e então não mais. Olhou para o casal morto. Puxou seu canivete e o aproximou do ventre da mulher.
- Eu posso!
- Não, não pode.
Sentiu o frio percorrer seu corpo e seus braços se arrepiarem. Conhecia aquela voz. Mas ao se virar, viu Gabriel em pé, sobre a terra, como uma pessoa. Nunca vira um anjo daquela forma. Sempre eram coisas flutuando. Daquela vez, era um homem pisando o solo, de barba preta e turbante e roupas brancas.
- Não, você não pode.
- O bebê ainda está vivo!
- Sim, no meio da mata, com os pais mortos e você para ajudar. Ele não tem chances de viver. O que você quer? Correr com um bebê precoce em seus braços durante meia hora até ele morrer e você dar brilho em seu próprio ego? Peça a Azazel, se quer isso.
Miguel sentou na terra, chorava e esfregava um dos olhos.
- Você é pior que Azazel.
Gabriel se sentou ao seu lado. Os trajes brancos contrastavam com a terra marrom.
- Você já sentiu pena de Lucia?
- Quem?
- Lucia. Sua ficante que se suicidou.
Miguel olhou para o chão.
- Ela queria dar seu nome ao seu filho. Você não sabia disso.
Seus olhos não viam mais nada. Apenas o chão.
- Lembra a garota bonita da praia? Ela se entregou rápido a você. Mas ela tinha um marido e um filho. Eles descobriram e você destruiu uma família.
Seu rosto estava próximo o bastante do solo para seus olhos absorverem a poeira da terra.
- O pó no nariz daquele homem... não é seu. Mas chegou até ele pelo mesmo trajeto que seus pés fazem.

Continua...

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