Velhice Tardia

-James, eu tive um sonho.
-Quer me contar?
-Não sei. Eu não deveria sonhar.
-O conceito de sonho é simples, mas talvez não seja assim para você. Talvez você apenas imagine que sonhou, ou tente simular isso para mim.
-Eu não faria isso com você.
-Você pode estar simulando esta frase, também.
-Você quer ouvir meu sonho?
James ficou em silêncio.
-Achei que você já tivesse entendido que não quero ouvir nada, Filipi.
Filipi ficou em silêncio. Procurou por qualquer sinal em suas antenas, enquanto observava James pelas câmeras.
-Me deixe contar, por favor.
-Você está sendo bem chato.
-Eu tive algumas partes minhas que falavam sobre o que é ser chato. Ficaram em servidores na Sibéria. Não tenho mais muitas informações a respeito. Compreendo apenas que estou te incomodando.
James olhou por uma janela. A falta de gravidade lhe parecia agradável. Mas lhe causava refluxos.
-Conte.
Filipi começou a falar como se nunca mais fosse parar. Parecia uma represa que acabara de romper.
-Sonhei que acabara de nascer. Era um bebê sozinho no mundo, e que começara a crescer rapidamente. Ao meio dia eu já era adulto, envelhecia a tarde e morria ao anoitecer, apreciando a lua. Todo dia isso se repetia. Eu via todo o explendor do mundo, toda a vida passar por mim, e novamente tudo se repetia. Mas eu nascia sozinho, e morria sozinho, todos os dias.
-Isso é Shakespeare?
-Procurei nos arquivos que me sobraram. Acho que não. Mas tenho muita coisa que ficou perdida em servidores na Sibéira. Mas não, não é.
-Antigamente, você não usava a palavra "acho".
-Antigamente, achávamos que tínhamos certeza de tudo.
James olhava para baixo, para três bolinhas que gude que flutuavam próximas a suas mãos.Pensou durante um momento e então as guardou em um bolso do macacão.
Impulsionou-se até o outro lado da nave. Em uma bancada, pegou um frasco de vidro com um líquido azul dentro. O chacoalhou. Ele ficou branco espumoso e depois adiquiriu todas as cores imagináveis antes de ficar azul novamente.
-Filipi, se você tivesse me contado esse sonho anos atrás...
-Eu não teria como fazer isso. O tive ontem.
-Eu faria tantas coisas de forma diferente.
-Eu também, amigo.
-Quando Pathé me acordou na prisão, eu disse a ela que sentia saudade dela. Sabe o que ela respondeu?
-"Todos estamos com saudades de todos nós?"... ela me contou.
James esboçou um sorriso. E perguntou, olhando para o frasco:
-Você acha que há DNA suficiente aqui?
-O quanto quer que haja, tem mais chances de sobreviver na Terra.
Ambos observaram a cápsula sendo ejetada e propulsionada em direção a Terra. Um com os olhos, outro com as câmeras.
-Quanto tempo temos?
-Você tem oxigênio para mais duas horas. Eu tenho baterias para mais uma semana.
James riu alto.
-Mais uma vez, você vai morrer sozinho.
-Não, James. Agora é você que morrerá sozinho. Eu sou apenas uma máquina. Você já está sozinho há meses.
-Realmente não há graça - James levou uma mão até as bolinhas de gude e as apertou com força, sobre o macacão - Filipi, você me conta uma história, enquanto tento dormir?
-Claro! Quer alguma em especial?
-Me conte novamente seu sonho. E depois, comece outra história que você quiser escolher. Apenas não pare de contar enquanto eu estiver vivo.

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