Pathé

A pelúcia balançava na sacola carregada ao ombro, enquanto a moça seguia apressada pela rua, entre enormes prédios e veículos barulhentos. Cortava com elegância outros pedestres, olhando o horizonte com firmeza. Enquanto isso, a girafa de pelúcia olhava para trás, vigiando a retaguarda e as pessoas que a fitavam com curiosidade.
No metrô chamava mais atenção. Pessoas e mais pessoas espremidas e a girafa ali, espetada no meio do corredor, olhando para o banco de idosos e as feições cansadas ansiosas por um lar. Seu pescoção balança à altura dos olhos dos passageiros. Em alguns momentos parecia uma criança carregada as costas como no costume indígena. Uma menininha tentava olhar por entre a multidão quem é que a carregava. Um rapaz disfarçou que lia algo ao celular e bateu uma foto.
A moça nada percebia ou não dava atenção.
Ao passar pela portaria do prédio, serviu de assunto ao porteiro que conversava com uma faxineira: "Lá vai mais uma! Esta semana já é a segunda que ela trás!". Ao passar pelas caixas de correio, recolheu sua correspondência. Cinco crianças brincavam no playground e a viram. Um menino falou: "Minha mãe disse que ela abre os bichinhos e faz macumba!" Uma menina completou: "Minha tia falou que ela compra um monte e sempre chora e diz que ainda não é a certa. Acho que ela procura alguma enfeitiçada."
Em uma parte a menina acertara. A moça sempre dizia que ainda não era a certa. Mas não chorava. Pelo menos não por pelúcias.
No hall do prédio, duas senhorinhas conversavam e mais especulação se formou: "O que ela faz com tantas girafas? Coisa boa não é!". A outra continuou: "Deve ser alguma tara. Aposto que ela faz safadeza com as bichinhas!". Na verdade, a velhinha pensava em sua doida e bem aproveitada juventude.
O elevador a moça dividiu com a família barulhenta que morava acima de seu apartamento. Um polido olá e os olhos estavam fixos na porta de metal do elevador. Ao menos os dois olhos da moça. Todos os outros olhavam para a girafa. A moça alisou com a mão o rabinho da pelúcia e pensou como se ela pudesse ouvir  seus pensamentos: "Calma, já estamos quase lá!".
Entrou em seu apartamento como se adentrasse seu refúgio. Tirou a pelúcia da sacola e a colocou sobre o sofá, sentada como um ser vivente. Ao seu lado depositou sua bolsa. Tomou uma ducha e livrou-se da sujeira que vinha da cidade. Voltou à sala, vestindo apenas calcinha  branca. Desviou-se e foi até o barzinho. Pegou um copo pequeno e o encheu de cachaça. Tomou de um gole só. Encheu-o novamente. Virou-se com o copo à mão e viu que a girafa a olhava.
Teve a impressão de que a pelúcia a censurava por beber. Pegou um estilete de sobre o balcão e sentou-se em frente ao bichinho. Cruzou uma perna e olhou-o atentamente, como se o analisasse. Deu mais um gole. Enxugou a gota que escorrera de seu lábio.
A girafa de pelúcia nada pensava, como é comum a todas as pelúcias. Se o pudesse fazer, já teria somado o branco da calcinha, a cachaça e o estilete e concluído: "É, vou virar despacho!".
Mas como meu conto não é de fadas, ela nada pensou. Meu conto também não é real, porque na vida real moças que gostam de girafas não bebem.
A moça alisou o longo pescoço de pelo macio, suspirou e reclinou-se no sofá. Vagarosamente e com um leve sorriso falou para a girafa: "É, você ainda não é a certa!". Desviou sua atenção do bichinho. Pegou sua bolsa, tirou de lá suas cartas e passou a abri-las com o estilete. Meia hora depois, a girafa foi levada para seu quarto, junto de suas incontáveis novas irmãs. Todas bem distribuídas no cômodo, não o enfeitavam. Mais pareciam sentadas nas arquibancadas de um estádio, olhando concentradas para um jogo. A nova moradora não era ainda a certa, mas não era apenas mais uma. Assim como todas, guardava uma história, mas não a história que a moça procurava.
A girafa que a moça procurava não era de pelo ou pelúcia, nem cara ou barata, nem grande ou pequena. Não existia no zoo e nem era ímã em porta de geladeira. Não era nem mesmo um parente, amor ou o papai. Era um momento no passado, congelado no tempo, imortalizado como uma foto. Um momento longe e inocente, cheio de vida e cheiros que voltavam a sua presença como se nunca tivessem partido sempre que via uma nova girafa. O animal pescoçudo de graça desengonçada era a saudade que a moça sentia da menina que fora, tão feliz e vivente e que jamais entristecera. Sofrera como todas as meninas e girafas sofrem, mas continuava a vida, orgulhosa de si. Apenas o momento se fora. A menina partira. Agora era moça.
Esqueci de dizer: as girafas de pelúcia sofrem menos, pois como expliquei, não pensam.


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